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Mostrando postagens de janeiro, 2011

roberto carlos com sucrilhos

Raica é uma gata sem raça que eu chamo carinhosamente de franga por causa da pelagem carijó. Foi abandonada em uma rodovia federal quando era tão pequena que mal sabia tomar leite no pires. Tinha mais pulgas do que pelos quando veio morar comigo. Foi amor imediato, sempre gostei de vira-latas, ainda mais com focinho cor de laranja. Ela tem lindos olhos verdes e o mesmo olhar de ressaca de Capitu, olhos de água. A Raica tem uma personalidade maravilhosa, adoro os deboches que ela faz. É praticante da arte do incômodo. Analisa os outros como quem separa feijões para o almoço. É uma pequena usurpadora. Se eu descuido do meu vinho, ela toma. Levanto da cama, ela deita no travesseiro. O melhor lugar do sofá é o dela. Ela também tem o melhor lugar do inverno quando a lareira está acesa, lugar de destaque no presépio quando é natal, deita em cima do jornal quando estou lendo e morde meus lápis quando rabisco. Quando tem frio, se aquece no George Hagi – peludíssimo Himalaia blue point –,

romantismo botânico

Na casa antiga da minha avó, logo depois do muro baixinho, tinha um jardim de rosas. As roseiras eram maiores do que eu. Maiores que o muro. Quem passava pela calçada conseguia vê-las e, esticando a mão, tocá-las. Eu lembro que adorava ficar sentada na frente das roseiras, incomodando as formigas. As rosas floresciam gigantescas, em maioria, vermelhas, outras brancas . Havia apenas uma amarela, minha favorita. Elas recebiam quem entrava pelo portão antes de qualquer um da casa, eram educadas. A minha casa também tem rosas no portão de entrada, como na casa velha da minha avó. Foi minha mãe quem as plantou. Eu queria gerânios, ela nem me deu ouvidos, plantou as mudas enfileiradas com a ajuda do meu pai. Um pelotão inteiro, perfilado e sentido. São mais sortidas do que as da minha avó, mas igualmente gigantescas. Quando uma resolve florescer, as demais ficam com ciúmes e chovem botões que depois desabrocham. Um dos pés conseguiu dar duas flores de cor diferente, nessas horas eu q

indicador rebelde

Eu dedilho o tampo das mesas do mindinho ao indicador quando estou com pressa. O dedão fica fixo, observando o trabalho em vão dos colegas, como se aquela agitação pudesse acelerar as pessoas ou o ponteiro do relógio. Não faço uma nem duas vezes, faço centenas. Mão esquerda ou mão direita e as duas juntas, quando os dois dedões - um de frente pro outro - se distraem conversando sobre o tempo. Não faço no sentido contrário, meu indicador não é um bom batuta, a mania perde o ritmo. Poucas coisas são tão ruins quanto manias descompassadas. Manter a ordem de uma mania, como a hierarquia discreta entre os dedos, cada um levantando, baixando ao seu tempo, tocando o tampo com pressões distintas, adequadas para o mesmo som exige aperfeiçoamento. Meus indicadores não possuem este dom da regência, não são obedientes, são traidores. Mais que isso, são desonestos. A minha pressa é muito exata. As minhas manias são muito organizadas. São moças que estudaram em colégio de freira, com saia plissada

letras e pedras

Assim como o meu filho, também carrego no meu porta-malas pedras e letras. Comentei que o Eduardo ganhou de natal um carro, desses de pedalar e que tem um bagageiro, não muito grande, mas cabe uma que outra coisinha. Perguntei o que ele carregava ali, a resposta foi uma das melhores: pedras e letras. Ele, com dois anos, já descobriu o que eu demorei algum tempo para saber. Não interessa a capacidade do porta-malas, reserve espaço suficiente para carregar as letras e as pedras. São os itens mais importantes. As letras formam as palavras, não sempre para serem ditas, também para serem escutadas, digeridas, guardadas, escritas. Pelas palavras a gente se comunica, pede informação sobre o caminho, informa a si mesmo que se perdeu. As letras formam as tatuagens internas, compõem o pensamento, afinal, não se pensa abstrato, se pensa concreto. As palavras são projetadas na estrada, como as placas que guiarão o caminho de volta pra casa. Uma letra dará a mão pra outra, costurando a mensag

desejo

Há um desejo. As explicações poderiam nem começar por aqui. Eu poderia não explicar que o meu desejo é uma matrioshka. Vejo-me enfileirando as bonequinhas em ordem decrescente, nominando uma a uma com aquilo que compõe o meu desejo. Batizando o infinito de cada universo que faz parte do que eu quero. Meu desejo é novo, a ponto de me deixar confusa. É um querer duvidoso. Tenho certeza dele, mas não tenho certeza de como, quanto. Eu não sei mensurar as consequencias, os riscos, mal sei da onde veio. Ainda não avaliei o tamanho da queda porque ainda não tirei os pés do chão. Ele me exige isso, leveza para flutuar. Vem me tirando o sono, fatiando minhas madrugadas, transformando meu travesseiro em pedra e, ao mesmo tempo, ocupando lugares no meu dia, espalhando migalhas na minha trilha, forjando encontros, simulando diálogos. Posso sentir o atrito de cetim na ponta dos dedos, virando renda perto do rosto. É um desejo corajoso de surpresa. Não posso dizer que gosto, porém sinto medo,

suporrinhações

Aos que insistem em supor qualquer coisa a meu respeito, não mais pedirei que não o façam. Façam. Concedem-me o grande prazer de contraditar bobagens, ainda que mentalmente. E me fazem o favor de abastecer a minha inquietude com as certezas que eu não quero ter. No momento em que tudo fizer sentido, perderei eu o sentido de ser. Prefiro organizar não quem sou, mas o que sinto. Prefiro me fazer companhia e discutir conceitos próprios a agradar opiniões alheias. Nasci do avesso, me conservo assim. Nasci com fome, olhos grandes, atentos e um nariz que aponta pra frente, ainda não mudei isso. Quando me apontam chamando de egoísta, acho graça. Eu sou umbiguista, é bem diferente! Minhas abdicações são sigilosas, não preciso pintar um muro com a lista das minhas concessões. Prefiro pintar os muros com as marcas das minha mãos, sujas em alguma poça, molhada em alguma água, mergulhada em alguma cor. As minhas digitais têm muitas histórias. Invento fatos, desinvento pessoas, reformo e reconst

pinguim mais bonito da festa

Tenho grande dificuldade em duas coisas: ser silenciosa e ser pontual. Nos casamentos sempre rezo pra noiva se atrasar pelo menos quinze minutinhos, porque é o tempo que o maldito relógio costuma manter de vantagem contra mim. Chego esbaforida na igreja, subindo uma série infinita de degraus, segurando o vestido longo com uma mão, decote e bolsa com o outro. Certamente o coque de tranças deve ter pendido para algum lado, o de baixo, imagino. No meu rosto já têm mais fios do que os que foram propositalmente deixados soltos. Abro a porta central da igreja, todos que já estão sentados olham pra trás. Não, eu não sou a noiva e pra minha sorte, ela ainda não chegou. A cerimonialista avisa-me que a entrada dos convidados é a lateral. Tudo bem, no próximo casamento, sem entradas triunfais. Neste, já é tarde. Aliás, bem tarde, nada da noiva. Consegui lugar em uma das últimas fileiras, ao lado de um senhor de bigode que usava um perfume de cheiro cítrico muito forte. Tentei desviar o nariz