Pular para o conteúdo principal

fábrica de memórias

A maior virtude do passado é se transformar em lembrança. Viajar para outro tempo usando a cabeça, ter o coração como bagagem e ficar hospedado em alguma memória sem hora marcada de ida ou de volta. Um passado que volta sem ser convidado. Cheiro de rosa me leva pra casa antiga da minha avó. Lá tinha uma varanda que servia de palco, tinha cristaleira com espelho no fundo que deformava a imagem, tinha banheira branca de louça, bacia de alumínio e capim cidró plantado no pátio dos fundos. Bolo de milho e café preto têm gosto de infância. Garopaba lembra meus pais. Caderno novo, primeira série, mesmo depois da faculdade.

A lembrança é uma flor que nasceu fora de época.

Em tempo que já passou, não se mexe. O que foi está junto com quem fomos. Lembrar é um exercício de assistir ao filme que não existe, mas nós fizemos. O que passou e fez rir, o que passou e fez nascer tristeza, cicatrizes e esquecimentos propositais fazem parte dos tijolos da nossa estrutura. Sim, somos, além de sonhos e desejos, lembranças. A memória pinta postais de saudade.

O tempo que foi acena de onde está. Nem toda a lembrança é de alguma coisa que nos faz falta. Há o que faz muito bem em ficar no que foi. E que jamais volte. Há memórias que trazem ensinamentos, escrevem tratados sobre o que não deve acontecer. Ou voltar a acontecer, são os calos dos pensamentos, onde apertam os sapatos. Entre choros e risos, todos sobrevivem. A saudade abre a cortina da memória, a paisagem não é bonita nem feia. É nossa.

Saudade não quer trazer nada de volta. Quer apenas pincelar o agora com as tintas de antes. A história ensina que a gente vive assim, de momento em momento e presenteia cada um com o que podemos sentir.

Ter história é prerrogativa de quem vive. Felicidades, tristeza, desilusões, surpresas, medos, essas tatuagens invisíveis que só quem tem sabe onde está. Viver é ato mágico. Ter a sensibilidade de admitir que pequenos milagres acontecem e poder colecionar-los nas lembranças é sensação divina. Levamos a rotina tão a sério, apressamos nossos ponteiros, empilhamos sentimentos, misturamos urgências no nosso café da manhã. Andei preocupada com as lembranças que vou ter daqui a algum tempo. Não quero ser do tipo que guarda recordações apenas na infância. Quero a infância do pensamento até a morte. Preciso lembrar do sorriso do porteiro ao dar bom dia, da gentileza do senhor que abriu a porta, do carinho sem querer.

Prefiro lembrar um pouco de cada dia. Por isso, em cada dia deixo tempo para nascerem minhas futuras lembranças. Quero sentir saudade daqui a uns dias de um abraço repetido na semana passada, de um olhar tímido e da minha vergonha. De aplaudir o alface e rir das angústias amorosas das amigas, de fazer piada com o que não devia. Lembrar que quase perdi o ar de rir de bobagem.

Não posso esquecer as recomendações que me fazem. Não que sejam necessárias, mas gosto de colecionar. Zelo e amor são melhores amigos.

Quero lembrar que hoje andei descalça no molhado e isso me fez cantar enquanto saltava na ponta do pé:

É um passo é uma ponte
É um sapo é uma rã
É um belo horizonte
É uma febre terçã...
São as águas de março
Fechando o verão
É a promessa de vida
No teu coração...

“É setembro”, pensei. E me vi recém acordada, refletida no vidro da janela, com o cabelo mais desgrenhado da rua. Quero muito ter saudade disso. Quero lembrar e ter saudade de todos esses momentos imotivadamente felizes que virão.

Eu quero sempre poder fazer algo do que me lembrar. 




Como se fora a brincadeira de roda
Memória!
Jogo do trabalho na dança das mãos
Macias!
O suor dos corpos, na canção da vida
Histórias!
O suor da vida no calor de irmãos
Magia!
Como um animal que sabe da floresta
Memória!
Redescobrir o sal que está na própria pele
Macia!
Redescobrir o doce no lamber das línguas
Macias!
Redescobrir o gosto e o sabor da festa
Magia!
Vai o bicho homem fruto da semente
Memória!
Renascer da própria força, própria luz e fé
Memorias!
Entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós
História!
Somos a semente, ato, mente e voz
Magia!
Não tenha medo meu menino povo
Memória!
Tudo principia na própria pessoa
Beleza!
Vai como a criança que não teme o tempo
Mistério!
Amor se fazer é tão prazer que é como fosse dor
Magia!
Como se fora a brincadeira de roda
Memória!
Jogo do trabalho na dança das mãos
Macias!
O suor dos corpos na canção da vida
Histórias!
O suor da vida no calor de irmãos
Magia!
Como se fora a brincadeira de roda
Memória!
Jogo do trabalho na dança das mãos
Macias!
O suor dos corpos na canção da vida
Histórias!
O suor da vida no calor de irmãos
Magia!
Como se fora a brincadeira de roda
Memória!
Jogo do trabalho na dança das mãos
Macias!
O suor dos corpos na canção da vida
Histórias!
O suor da vida no calor de irmãos
Magia!
Como se fora brincadeira de roda
Jogo do trabalho na dança das mãos
O suor dos corpos na canção da vida
O suor da vida no calor de irmãos
Como se fora brincadeira de roda
Jogo do trabalho na dança das mãos
O suor dos corpos na canção da vida
O suor da vida no calor de irmãos

Comentários

Keila disse…
Ahh Kukynha, que lindo! Já sabes que sou tua fã.
Teus textos sempre ficam na memória.
Carlos disse…
Kukynha,
Nossas Lembranças são, mais do que o alicerce, o Combustível do Presente!!!
Sou fascinado por História!

Li o Post ouvindo Daiana Krall...

Postagens mais visitadas deste blog

(des)graças virtuais

Lembram que há posts atrás comentei sobre um fato engraçado que havia acontecido, mas eu não podia ainda contar porque não sabia como? Pois bem... contarei. Antes, é sempre bom lembrar que não é nada pessoal, tudo em nome da literatura. Faz de conta que aconteceu com a prima de uma amiga da sobrinha da vizinha da minha irmã. Ah, eu gosto de inventar personagens para fatos reais e me agradam fatos fictícios para personagens reais, também me autorizo complementar a verdade, inventar outras e ajeitar do jeito que eu bem entendo. Já que sou eu quem escreve, eu posso tudo. Não sou democrática quando escrevo. Nem quando tenho fome. Era uma vez, uma festinha. Dessas festinhas que acontecem todas as semanas, no mesmo lugar, com as mesmas pessoas reunidas, que a gente já tem até uma noção do que vai tocar, do que vai acontecer, de quem vai encontrar. Essas festas onde não precisamos de dons mediúnicos pra prever incomodação ou com quem se vai embora, melhor, com quem não se vai em...

poucos gigas

Eu não sou boa fisionomista. Não sou boa em lembrar dos rostos das pessoa que conheci. Se eu preciso encontrar alguém, tento lembrar da roupa que estava usando e se for “o Fulano, que estava bebendo água com a gente em tal lugar”, vou lembrar da marca da água, se era com ou sem bolinhas, como o Fulano bebia, onde era o lugar e o que fizemos, mas provavelmente, não me lembrarei do rosto da pessoa. Às vezes eu não presto muita atenção no rosto, escuto o que a pessoa fala, fico atenta aos gestos... pelo menos em uma primeira conversa. Sou detalhista demais pra prestar atenção apenas no rosto. A menos que a pessoa seja muito marcante já à primeira vista. Tive uma paixão adolescente no colégio. Por todo o segundo grau, na verdade. Era um menino que nunca estudou comigo, nunca namoramos, mas éramos declaradamente apaixonados um pela companhia do outro, pela nossa sinceridade e pela maneira como jamais nos cobramos nada. Havia um pacto branco de jamais mentir. Havia um pacto branco de não ...

estudo antropológico (I)

Podem me crucificar pelo que vou dizer agora, mas um homem de verdade precisa ter seu futebol semanal. Ou coisa que seja equivalente. E digo mais: pelo menos semanal. Se for mais de uma vez, beleza. Se for um dia de futebol, outro do tênis, mais um de pôquer e outro de paintball, que bom! Se tiver churrasco depois do futebol, melhor ainda. Um atleta precisa repor líquidos, cerveja é válida. Um atleta precisa comer proteínas, ainda que oriundas de uma bela costela pingando gordura em cima do carvão em brasa. Hmmm, até eu fiquei com água na boca! Um homem precisa se reunir com seu clã. Eles precisam gastar energia física e mental em conjunto. Precisam correr, precisam disputar a bola, urrar a cada gol feito – sem dancinhas, por favor. Depois eles precisam comentar cada lance, de preferência durante o churrasco, relembrar o drible, aquela bola no meio das pernas, o chute no travessão. Debocham de quem perdeu como se fossem renegados das cruzadas e minutos depois servem um copo de cerveja...