Vocês podem achar que eu ando escrevendo muito sobre fins nos últimos tempos. Justifico: tenho pensado muito sobre eles. Observado mais ainda! Escutei histórias, fui informada de fatos, juntei pecinhas. Acabei seduzida por finais. São muito interessantes. Se amar é verbo imprevisível, terminar é verbo definitivo. Isso de vai, volta, volta, vai, não vale. Estou atenta aos finais, à morte do amor, ao momento onde o “tudo aquilo”some. Amor pode evaporar, sabia? Amor não precisa esfriar pra acabar, pode ter fim no auge.
E tem mais – agora vou me confessar – ando estudando os fins porque estou bem ruim de começos. Isto é assunto para depois. Não quero desviar o foco do fim. Quero muito falar sobre os pontos finais. Quero saber por que acaba! Eu sei que tem um zilhão de porquês, que variam de vivente para vivente. Eu sei de uma porção de coisas sobre fim de amor. Mas, olhem só, há pouco tempo três histórias de óbito sentimental chegaram ao meu conhecimento.
Contarei porque sou língua de trapo:
1. Causa mortis: afogamento no leite.
Era uma vez um casal que estava se conhecendo. Ela queria ele, ele queria ela. Viviam para cima e para baixo: almocinho aqui, jantinha ali, passeio de mãos dadas na praça, barzinho com os amigos. Casal quando se conhece parece que precisa de testemunha. Ele amava ela, era correspondido. Tudo estava muito bem. Trocavam muitas mensagens pelo celular durante o dia. Telefonavam apenas para enriquecer a empresa de telefonia, pois não tinham lá muita coisa para dizer.
- Oi!
- Oi, lindo!
- Tem sol aí?
- Tem sim!
- Aqui também.
- Acredito, trabalhamos no mesmo prédio!
Riam juntos dessas bobagens que só os apaixonados acham graça. Um dia ele pediu que ela arrumasse a mala para o final de semana. Iriam viajar juntos! Dormir juntos pela primeira vez! Não que nunca tivessem transado. Isso já. Mas nunca dormiram, acordaram, conviveram por vinte e quatro horas seguidas. Ele mandou lavar o carro, recomendou que aspirassem bem por dentro. Ela comprou sutiã novo, calcinha nova, pijaminha novo COM RENDAS (grifei). Foi ao salão, fez as unhas, escova, depilação. Se tivesse tempo, faria massagem. Se tivesse mais tempo, curso de striper.
Na hora marcada, subiram a Serra. Hospedaram-se no Hotel que ficava na Avenida Central, quarto com banheira, cortinas brancas esvoaçantes, lençol com cheiro de alfazema. Jantaram no melhor restaurante, beberam vinho, compraram chocolates e tiveram uma noite de amor da-que-las.
Na manhã seguinte, café servido na sacada do hotel, os dois trocam sorrisos. Um de frente para o outro, cada um com sua xícara de café. O dele era puro, o dela era com leite. No meio dos planos sobre como ocupariam o resto do dia, ela pega uma rosquinha com seus dedos finos acabados em lustroso esmalte, ele observa com atenção, ela mergulha o anel de maisena no leite e chupa.
Morreu o amor. Afogou-se no leite.
2. Causa mortis: acidente do trabalho.
Eles se conheceram num bar. O assunto era interessante. Trocaram o bar por um motel. Ela apressou-se em ir embora:
- Amanhã vou mais cedo para o serviço.
Ele relatou a noite com empolgação para os amigos. Falou bem dela. Ligou no dia seguinte. Ligou também no outro. Ligou no terceiro e convidou para jantar. Foi agradável, ela tinha um bom humor. Ele gostava do jeito que ela enrolava a ponta do cabelo antes de prender. Empalava os fios com um palito de madeira. Quando estavam indo embora ele a convidou para conhecer o apartamento, ali pertinho. Ela respondeu que preferia deixar para a próxima:
- Levei serviço para acabar em casa.
- Pena... podemos combinar um cinema na sexta?
- Claro, vou direto do serviço. Me liga!
Ele não ligou.
Ela ligou.
Ele não atendeu.
- Cara, é a Márcia, não vai atender?
- Não...
- Mas você pareceu ter gostado um monte dela.
- Gostei, mas ela tem muito serviço.
- Que bom, né. A mulher trabalha, não é uma desocupada que vai passar o dia pensando bobagem enquanto não começa a novela.
- Não é isso... ela sempre tem “serviço” e não “trabalho”.
Morreu o amor. Acidente de trabalho.
3. Causa mortis: atropelamento
Fazia um tempão que ela olhava ele. Cuidava até pelo elevador panorâmico. Almoçavam no mesmo restaurante nas terças e nas quintas, dia que ela tinha curso. Ela já havia cogitado derrubar alguma coisa nele para iniciar uma conversa. Ele correspondia aos olhares, mas nunca fazia nada. Nunca falava com ela. Cogitou também pedir ao garçom para entregar um guardanapo com o telefone dela, foi desencorajada pelas amigas:
- Assim é coisa de oferecida!
- Mais um pouco eu peço pro garçom me levar lá, de bandeja!
- Daí nem é oferecida, é dada!
Foi convidada para um bingo beneficente. Resolveu ir porque não tinha mais nada para fazer. Não que no bingo tivesse... mas pelo menos a cerveja estava gelada e talvez ela tenha tomado um ou dois goles a mais do que deveria. Ficar bêbada em bingo beneficente é um episódio inusitado. Mais inusitado que isso só dar ré com o carro na hora de ir embora e atropelar um ciclista.
Apavorada, foi prestar socorro e era ele, o objeto de seu desejo. E ela procurando na bolsa a pastilha de mel que usava para a tosse, querendo disfarçar o cheiro de cerveja. Por sorte ele não se machucou, arranhou um pouco o braço. Conversaram, ele percebeu o teor alcoólico da pessoa e se prontificou a dirigir o carro dela até em casa. A bicicleta atropelada foi no porta-malas semi-aberto. Conversaram mais e mais e mais e na hora de se despedir, ela o beijou. Ele retribuiu. Era óbvio que ela sempre foi uma mulher de atitude, bêbada, mais ainda. Entrou em casa e ligou para as amigas para contar que foi ao bingo mas fez um belíssimo strike!
No dia seguinte recebeu flores do moço, em casa.
No outro dia, recebeu o próprio moço, dizendo que estava passando ali por perto...
Foram caminhar pela rua. Mais uns beijos e chegou a fome. Ela fez a janta em casa, ele conheceu a gata, visitou os parentes nos retratos da parede, disse que era parecida com a mãe. Ela lavou a louça, ele secou. Sentaram no sofá, assistiram um filme. Ele falou sobre casamento, filhos e sobre férias. Ela quis sumir. Achou melhor dar sumiço nele, inventou uma dor de barriga e para que ele fosse embora.
Morreu o amor. Foi atropelado por ele.
Amor é coisa que dá trabalho, cada um carrega um gatilho do fim. A falta de tolerância é muito cômoda. Pontuar um desagrado e usar como tiro fatal. Por que não rir das pequenas coisas? Por que não conversar sobre as diferenças. O fim é fácil. O fim tem sido o caminho óbvio. Amor já nasce para morrer e nunca é de morte natural.
Amor sozinho não se mantém. É preciso muita disposição, doses de tolerância e uma pequena mágica chamada romance. Eu, que morro o tempo todo, cansei de matar.
(ando tão de saco cheio de assinar esses atestados de óbito...)
Causa Mortis
Engenheiros do Hawaii
dia após dia, cada vez mais fria
você matou sua mãe pra estudar anatomia
ano após ano, seu sorriso insano
você matou seu pai com veneno no cinzano
você matou o presidente norte-americano
você era democrata, ele, republicano
você matou sua avó ouvindo mano-a-mano
matou seu avô-não me diz que foi engano
!não! não vou ficar aqui
pra alimentar seu bisturí
!não! você não me seduz
com seu jeitinho cão andaluz
você matou sua tia, morte por asfixia
matou seu tio com tiro de fuzil
matou sua irmã com veneno na maçã
com tiros de canhão, matou seu irmão
você matou todo mundo (era esse seu plano)
matou sua sede (bebendo sangue humano)
matou a charada (vai resolver o plano)
matou muita aula (vai repetir o ano)
!não! não vou ficar aqui
pra alimentar seu bisturi
!não! você não me seduz
com seu jeitinho cão andaluz
Comentários
Quanto aos atestados de óbito, no mundo "facebookiano" de hoje está muito fácil "curtir" e deixar de curtir as pessoas com quem nos envolvemos...gestos de amor não são cliques no computador.