Vai dizer que um amorzinho platônico vez que outra não é bom?! Eu concordo que sim, por isso, provavelmente, vou pra fogueira. Digo mais, confessando como quem está diante de um padre em pleno juízo final, era minha escolha favorita na adolescência. Não fui muito dada às entregas pessoais, aos beijos furtados no fim da aula – mentira, era sim. Porém, ainda, preferia os amores ideais. Os amores que eu imaginava. Esses eram duradouros, ocupavam linhas e mais linhas, gastava grafite, borracha, horas de sono. Romances ilustrados em antigos cadernos. Meus amores platônicos eram ecologicamente corretos, aproveitava a folha inteira, frente e verso. Muitos viraram barquinhos colecionados por anos nas gavetas da escrivaninha.
Escolhia um alguém inventado, uma vítima que apenas emprestava seus contornos físicos às situações e personalidade que eu depositava. A vantagem era que o amor acabava sem ter que terminar, sem dar explicações, sem cortantes fatos reais. A desvantagem era a falta do tudo de fato. Carinho sentido com a imaginação, beijo com sabor de ideia, encontros sem sair do sofá de casa. Não chegava tarde porque não saía. Produzia corações, batizava com os nomes que eu mesma queria que se chamassem.
É um amor tão puro. A prática oferece riscos baixíssimos. A sensualidade fica depositada apenas nos cílios abanando, solidários à solidão de corpo.
Quando quero brincar com meus amores platônicos costumo dizer “Platão deve me amar”. O tal amor platônico, dizem os filósofos, surgiu no célebre discurso intitulado O Banquete, quando se tentava definir o amor. Até hoje filósofos, sociólogos, cientistas, antropólogos, antropófagos, poetas, simpatizantes e aspirantes não conseguiram. Toda a tentativa demanda bravura. A frustração não é recebida com tristeza. Até por meios químicos e morfológicos o coitado do amor já foi ameaçado de ser desvendado. Aceitem, amor é assim: ou é ou não é. E não posso deixar de falar que essa regra também tem exceção. Trocando em miúdos andamos do nada ao lugar algum. Ótimo.
Não foi a última vez e não será a última. Platão, no seu banquete na casa de Agatão – um poeta! – concede ao amor a possibilidade de ser dirigido a algo irreal ou que não é concreto. O amor ganha o direito de existir e ser reconhecido como energia sexual, como diria Freud, abstratamente. Mas de onde sai o fundamento para esse abstrato? Do sujeito que ama platonicamente, ora bolas.
Amamos, dessa maneira, não mais do que o nosso reflexo. Não é narcisista, porque isso seria amar a si, reconhecendo-se. Amamos o outro que inventamos, que supomos, aquele em quem depositamos a parcela de nós que agradaria que ele fosse. Na nossa cabeça, é. E digo na nossa cabeça porque um amor platônico é muito mais um amor de cabeça do que de coração. Talvez nesses casos razão e emoção nem entrem em conflito. Não há romance, mas é romântico.
É um monólogo de Romeu e Julieta.
É um relacionamento com a mentira aceita.
Amor de dentro pra dentro onde se acaba sem fracasso.
Essa projeção de amor ideal, sendo uma parte nossa depositada em uma outra pessoa – teoricamente fictícia – é uma boa maneira de conhecimento. Juro que eu não estou inventando isso agora. Jung já teorizava a respeito. Toda a teoria a respeito da persona e da individuação passa por este mecanismo de ser outro sem deixar de ser a si mesmo. E não tem isenção nenhuma nesse processo, não há descompromisso, não envolvimento. Pelo contrário, nos envolvemos até as tampas com essa pessoa. Entre entendimento, desentendimentos, momentos de alegria, descobertas e até luto. Calma, nada disso é psicótico. É tudo bem normal.
Borges escreveu um texto onde conversa consigo, chamado Borges e Yo. A primeira vez que li senti um misto de alívio e inveja. Não fui a única nem a primeira pessoa a escrever sobre si em busca de mim. Borges produziu mais relações entre ele e ele, inclusive em poesias. Foi um platônico também. Entre idas e vindas, diálogos e narrativas, o consciente e o inconsciente fazem contato. Meus diálogos, desenhos, rabiscos e histórias adolescentes talvez tenham sido uma espécie de auto-terapia. A cada amor platônico, mais dúvidas e certezas extremamente tranquilas porque nunca tive a ilusão de ter todas as respostas. Fazer muitas perguntas sempre me satisfez. Nasci na fase dos porquês, confio que nela morrerei. As interrogações não me engasgam. Aprendi a me elaborar assim, nessa única habitação de um duplo. Às vezes de múltipla. Reconhecer isso é saudável, é uma redenção. Sou um prato cheio para Jung.
Mas quem consegue ser um só?
Farei coisa rara, vou explicar o porquê da trilha sonora deste post: acho linda a relação platônica com a estrela. Acho linda a descrição da estrela como um corpo nú da constelação, lindo o jeito que se fala que ela é só e não sofre. A estrela não diz uma palavra... empresta seus contornos, é pura representação, reflexo, depósito platônico de quem canta e ainda assim, identificação, porque "é bom saber que és parte de mim..."
Estrela, estrela
Como ser assim
Tão só, tão só
E nunca sofrer
Brilhar, brilhar
Quase sem querer
Deixar, deixar
Ser o que se é
No corpo nu
Da constelação
Estás, estás
Sobre uma das mãos
E vais e vens
Como um lampião
Ao vento frio
De um lugar qualquer
É bom saber
Que és parte de mim
Assim como és
Parte das manhãs
Melhor, melhor
É poder gozar
Da paz, da paz
Que trazes aqui
Eu canto, eu canto
Por poder te ver
No céu, no céu
Como um balão
Eu canto e sei
Que também me vês
Aqui, aqui
Com essa canção
Comentários
Extraordinariamente mirabolante.
Mas, já que o Google consertou o defeito, voltei aqui para deixar registrado o que já coloquei no Face...
Ahhh o Amor...
Vou ser processado por plágio e/ou adulteração, mas, ao menos, cito a fonte do original: Cecilia Meireles.
"Amor é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda."..