Não existe coisa mais clichê do que almoço em restaurante de praia em pleno inverno. A maioria dos estabelecimentos estão fechados, sobram dois ou três frequentáveis e consumíveis. Independente de qual a metodologia de serviço empregada, o caos é sempre o prato principal. Mesas próximas simulam famílias numerosas quando a meia dúzia de casais reunidos nunca sequer trocou um bom dia.
Quando a família combina tal programação, cogito mentalmente almoçar torradas, inventar um super prato de miojo com ingredientes mirabolantes, sopa de concha, pedra moída, bolinho de barro do Eduardo. Calo os pensamentos. Em nome da união familiar que almoça com o clã completo apenas nos finais de semana, aceito o que escolhem. Nem ouso manifestar-me contra, seria voto vencido. Ganharia etiqueta de mala. Possivelmente fariam piada com meus instintos antissociais alimentícios. Tenho por princípio que é possível divertir-se em qualquer lugar do mundo. Costumo falar que se me trancarem em um armário, faço stand-up show para os cabides.
O aperitivo sempre será a paciência. Aviso antecipadamente o estômago que talvez um tempo de espera seja necessário, para que não assuste as pessoas. Às vezes o meu estômago pensa que é um lobisomem. De casa até o restaurante vou cochichando pra mim todos os mantras que conheço sobre paciência. Alinho os chácras.
Na porta do restaurante, o último suspiro profundo antes do cheiro generalizado de polenta. O último olhar para o mundo da rua. Dois bem-te-vis sentados na placa da calçada perguntam-me se tenho certeza do que estou fazendo. Percebem meu horror com seus pequenos olhos pretos. Eles têm um sarcasmo nas penas, parecem observar algum tipo de espetáculo. Sádicos emplumados. Na verdade torcem para que eu entre, implore por uma mesa, cace um garçom que vai demorar dois dias para me trazer uma água com mais nitrato do que o considerado saudável para consumo. Sem falar nas digitais engorduradas desenhadas na borda do copo. Sou repreendida pela minha mãe quando bebo água no bico. Acusada de dar mau exemplo ao meu filho. Como se ele precisasse de mau exemplo para ser esse projeto de anarquista!
Não foi preciso esperar por uma mesa. Emendada na nossa, mais duas ou três famílias distintas ocupavam as seguintes. O senhor sentado ao lado da minha mãe na mesa vizinha estendeu a mão: “Posso?” Furtou os guardanapos antes que eu dissesse sim ou não. Na continuação do quinhão de mesa pertencente às posses da minha família havia mais um porta-guardanapo. Não me opus. Mas Eduardo sim! Acalmei o pequeno, negociei batatas fritas, polenta e coraçãozinho. Ele aceitou.
Pedi minha água ao garçom que, por obra divina, trouxe rápido. Confiro o rótulo, os nitratos a mais me abanam de dentro da garrafa plástica. Procuro abstrair dessa constatação. Parto corajosa em direção ao buffet, preciso alimentar o pequeno anarquista. Sirvo a salada, o arroz, as polentas, as batatas e na hora dos grelhados, não tem mais coração. Sirvo salsichão enquanto o moço que atende forra novamente a bandejinha com os corações de galinha – Eduardo está nessa fase agora. Retorno um pouco para servir o prato com os miúdos e ouço: “Que bonito, furando a fila.” Fulminei o cidadão com olhar de mãe em plena luta para alimentar sua prole, qual não é minha surpresa quando identifico o nanico usurpador de guardanapos. Ser muito corajoso, visto que eu tenho, pelo menos, três vezes o tamanho dele. Sem salto!
Em nome da política da boa vizinhança, pesei o modesto prato do Eduardo, voltei pra mesa.
Em seguida o ancião voltou ao seu posto. Observei a mesa do cidadão. Tratava-se de uma convenção de monstros com as ilustres presenças do corcunda, do ogro, da bruxa e mais um montão de habitantes do lado escuro da floresta.
Deixei o pequeno sob os cuidados dos avós e dos padrinhos enquanto fui me servir. O mini-rapaz que ocupava posição à minha frente, acompanhado pelo projeto de Wandinha Adams, palestrava sobre o salmão. Ou ele estudou dias pra impressionar a guria ou tem uma grande capacidade de improviso. Da salada aos grelhados uma longa explicação sobre o Omega 3. Espero ter perdido qualquer coisa sobre os ômegas um e dois. Lógico que eles faziam parte da convenção da mesa ao lado.
Durante o almoço perdi alguns pontos de Q.I. por osmose inversa. O ogrinho bombado do meu lado explicava ao nanico usurpador de guardanapos as maravilhas de um aparelho de exercícios que havia adquirido. Dizia que comia qualquer coisa, que gastava tudo com aquele milagre, que deixava o chão do apartamento diariamente ensopado de suor. Nesse momento, olhei para a minha mãe, com os olhos tão esbugalhados quanto os meus. Ela suspirava batendo os impacientes dedos na bordinha do prato, seguramente já imaginava o cheiro azedo do apartamento, o coquetel com litros de veja, vanish, carpex, querosene, água sanitária, panos e mais panos de limpeza. Eu já pensava em dar meu cartão de advogada ao morador do apartamento de baixo. Com a intensidade e a frequencia do suor, a infiltração era garantida.
Resolvi partir para a sobremesa – minha parte favorita -, já havia averiguado a presença do mousse de maracujá, da torta de bolacha, do sorvetão de chocolate e todas essas doçuras de restaurante que equilibro num pequeno pote e ainda jogo por cima o creme branco do sagu. O sagu não. Só o creme, que é o maior adúltero das sobremesas – uma hora dessas dedicarei um texto apenas a esta teoria.
A fila da sobremesa estava engarrafada. Mais do que meus atuais trânsitos astrológicos. Espichei os olhos até o início da fila. Duas senhoras de circunferência avantajada, também oriundas da mesa vizinha, aquela da convenção dos monstrinhos, comentavam o buffet de sobremesa. Ah, não. Comentaristas de buffet de sobremesa... já era demais. Uma analisava a textura do pudim de leite. A outra constatava a presença de muita farinha na torta de limão e já ensinava uma maneira de fazer merengue que nem o que estava em cima do mousse de chocolate. Olha, fiquei furiosa. Mas sobrevivi. Saí da aventura vivíssima, muito bem alimentada.
E com cheiro de polenta para satisfação dos passarinhos debochados que permaneciam sentados na placa apesar da garoa.
Não quero lhe falar,
Meu grande amor,
Das coisas que aprendi
Nos discos...
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
Eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa...
Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens...
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço,
O seu lábio e a sua voz...
Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantada
Como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
Cheiro de nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva
Do meu coração...
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Essa lembrança
É o quadro que dói mais...
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como os nossos pais...
Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu tô por fora
Ou então
Que eu tô inventando...
Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem...
Hoje eu sei
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Tá em casa
Guardado por Deus
Contando vil metal...
Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo,
Tudo o que fizemos
Nós ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como os nossos pais...
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