“Existe sempre uma coisa ausente que me atormenta.” E quem nunca foi atormentado por um vazio? A frase poderia ser minha, poderia ser sua ou de qualquer um que já foi machucado pela presença da ausência. De qualquer um que já suspirou decepcionado ao olhar o banco do carro vazio, que ouviu a música certa na hora errada, que queria falar algo e calou. O que dói é a falta que se sente, dói por não ter medida. Não se mensura o quanto se tem de ausência. É impossível quantificar o vácuo. A ausência não tem hora, duração ou lugar. Mas ela está presente o tempo inteiro, por tudo, sem interrupção.
A frase muito pertinente é de autoria de Camille Claudel, artista plástica mais conhecida por sua vida do que pela sua obra – o que não é mérito para uma escultora do porte dela. Quando a vida de um artista está mais em foco do que a sua produção é porque produziu muito mais sem utilizar seu dom. O que Camille fez? Além de ser um prodígio como escultora e ousadíssima como mulher, Camille se apaixonou. Da mesma maneira que mulheres se apaixonam hoje em dia. Camille amou como as mulheres amam. Aos dezenove anos.
Aos dezessete anos Camille Claudel foi morar em Paris. Esculpia com tanta perfeição que foi trabalhar na equipe de Auguste Rodin – esse todos conhecem mais pelas obras do que pela vida. Ela era encarregada de fazer as mãos e os pés das esculturas de mármore, única mulher dentre os ajudantes. Entre uma pedra fria e outra, encontrou calor nos braços do mestre, o conforto de um amor. O romance começou quando ela tinha dezenove anos e ele quarenta e cinco. Diversas vezes Camille pousou para Rodin. Diversas vezes os dois andaram em público como namorados, inclusive frequentando alguns eventos, assumindo perante a sociedade do século 19 o escandaloso amor que existia entre eles. Mencionei que Rodin tinha mulher e filho? Não? Pois tinha e obviamente optou por ficar com a família quando Camille lhe pediu que escolhesse. Camille, depressiva, resolveu se trancar em seu atelier, produzir, beber e destruir suas criações até ser internada por sua família em um hospício. Morreu sozinha aos setenta e nove anos. As cartas que mandava à família e a Rodin são ricas de inteligência, delicadeza, dor e muito amor. Dizem que Rodin jamais a esqueceu.
E porque amar nem sempre permite estar junto de quem se ama, o fabuloso Rodin esculpiu “O BEIJO”. Talvez seja sua obra mais conhecida, junto com “O PENSADOR”. Originalmente tinha outro nome, "Francesca da Rimini", e pertencia a uma coleção chamada “Os portões do inferno”. Por que um beijo pertenceria aos portões do inferno? Bom, Camille explicaria perfeitamente, mas jamais se atreveu.
O que eu mais admiro nessa história toda é a ironia. Na escultura, os lábios não se tocam. O último beijo de Rodin e Camille ficou eternizado pelo olhar apaixonado dos amantes, na expectativa de lábios de mármore que jamais se tocaram. Jamais se tocarão. A pedra fria de mármore traduz a pele dos amantes em seda, tamanha a perfeição do afeto retratado. A posição dos corpos, sugerindo a intimidade sem apelo sexual – apesar da nudez – faz aquecer os olhos. O beijo faísca no mármore.
Nunca me avisaram qual seria o último beijo dos amores que já sepultei. Nunca pude dar ao último beijo o empenho que um adeus mereceria. Minhas esculturas sempre foram de areia, inacabadas e imperfeitas. Jamais pude eternizar o último momento da paixão, gravar o último olhar.
Rodin foi esperto.
Provavelmente ele também não soube qual foi o último beijo, qual foi o selo do fim do romance (e não do amor). Resolveu criá-lo. Não de modo que fosse eterno, não para ser um beijo para sempre, mas para ser um quase beijo. Um olhar infinito. A expectativa pelo início do beijo. Com muita genialidade soube transformar o que seria o fim em um início. Amantes famintos, com água na boca, lábios separados e corpos enlaçados pelos braços.
Acho fascinante os quase. Quase amores, quase beijos, quase tudo. Se não fosse o quase, seriam os amores, os beijos e tudo. Lembro de muitos quases, na verde, lembro de quase todos. Não sei qual foi o último beijo, mas sei qual foi o quase. O quase é a falta de cuidado planejada. É a mínima possibilidade que se concretiza. A escultura que por detalhe não se beija.
Camille quase foi feliz. Acabou louca. Uma loucura não necessariamente patológica, ficou louca de amor. Louca pela falta dele. Louca pela ausência representada pelo quase. A tormenta da ausência, talhada por Rodin no mármore de um quase beijo. A última e eterna representação de um final quase feliz. Faltou coragem para escolher o amor e renunciar aos comodismos da vida. Sobrou talento para transformar o mármore na eterna tormenta de Camille. “O beijo” é a forma da ausência. Um adeus que não foi dado. A ausência concede esperança. Os lábios que nunca se tocaram porque o último beijo nunca foi dado. O último é sempre uma ilusão. Não há último anunciado. Pode haver uma ameaça de último.
A última vez, o último amor, o último cigarro. O último simplesmente acontece. O fim é o que acaba, não o último. A ausência é o verdadeiro ponto final. A falta do toque entre os lábios é a tormenta em forma de mármore. Ou melhor, de não mármore. O último pode ser repetido pra sempre, uma sucessão de últimos. Que bom poder transformar o último em algum começo. Todo o fim é também um início.
Descobri que o último sempre pode ser trapaceado. O início sempre pode ser reinventado. Descobri que o fim da tristeza é o início da saudade. Não lembro do último beijo. Nunca vou esquecer do quase.
Toda a ausência traz uma possível insanidade.
Camille Claudel sempre soube.
Da série dialoguinhos.
- Tu achas que tenho chances de acabar como Camille Claudel?
- Paranóica?
- Isso veio depois, mas depressiva, em princípio.
- Por que acabaria?
- Sei lá, vai que eu tenho tendências.
- Acho que estás impressionada... Por que teria?
- Por que não? O psiquiatra aqui é tu... e eu sonhei com Camille Claudel por duas noites.
- Certo. Podemos investigar, se isso te deixa mais tranquila.
- Investigar? Investigar o quê? ME investigar???
- É...
- Não, ah não... não vai dar certo. Ando com mania de perseguição e tu querendo me investigar. Não! por acaso tu és da CIA?!
- Cara, tu estás cada vez pior!
- Não me chama de cara! Eu sou tua amiga, não teu amigo.
- Maniática.
- Vai dizer que os maniáticos não podem ser bipolares e os bipolares não são potenciais suicidas quando não estão em mania???
- Onde tu pretendes levar essa nossa conversa?
- Não sei. Para um divã.
- EU vou acabar num divã assim...
- Tu podia me fazer uma análise, um questionário daqueles bem padronizados, pra saber se eu posso ou não acabar que nem a Camille...
- Não daria certo. Tu tentarias manipular...
- Pra acabar ou não como a Camille?
- Meu Deus, não sei. Tentaria manipular.
- Tu achas que eu sou manipuladora?
- Não! Mas é trapaceira.
- Mesmo assim tu me ama?
- Claro, tu és a melhor amiga que eu tenho.
- Que amor... me chama de manipuladora, trapaceira e agora vem dizer que me ama. Doutor, se há um bipolar entre nós, é o senhor!
- Doida!
- Fofo!
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Musiquinha:
Todas as bobagens que eu já disse
Dariam pra encher um caminhão
Mesmo assim encontro no caminho
Milhares mais otários do que eu
Por isso meu amor
Não leve tão a sério
Nem o que eu digo nem o que eu deixo de esconder
Não vai ter graça o dia
Em que bater na porta
E você não abrir pra responder
Todas as pessoas que eu conheço
Cabem bem juntinhas na palma da mão
Pra você guardei um universo
Quando falta espaço eu faço verso e durmo na canção
Por isso meu amor não pense que é brinquedo
Eu tenho medo e morro de paixão
Não vai ter graça o dia
Em que eu abrir a porta
E a tua mão vazia disser não
Por isso meu amor
Não leve tão a sério
Se eu morro de medo
Brinco de paixão
Não vai ter graça o dia
Em que eu te ver na porta
E não souber se entro
Ou faço uma canção...
(romance - nei lisboa)
Comentários
E que foto mais lindaa!
=***
BEIJO COM CARINHO.
Cris
Capaz!
Tu és a Kuky!!!
Bom... Qualquer coisa te visito no manicômio e levo maçã e chocolates, tá?
AMEI O POST.