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mudices

As nossas conversas são boas e as nossas mudices são melhores. Entendo que as nossas mudices são conversas sem palavras. Entendo que eu tenho conversado muito assim, mais ouvindo. É um hábito que tenho desde criança, absorvo a alma lendo os gestos, decifrando códigos, montando as palavras nas frases como um quebra cabeça de intenções. Por mais que eu fale, que eu goste de escrever, meu interesse é ouvir. Não desperdiço um bom estranho. Nem um conhecido. Alguns amigos me conhecem há tanto tempo que me confundo nas lembranças, nossas histórias fazem uma trama, apesar dos longos períodos distantes. Gosto de quando sentamos no sofá olhando pro mesmo nada da parede, depois recebo um agrado com o dedo indicador escorregando pelo meu nariz. É minha deixa pra sorrir sem mostrar os dentes, iniciando a pauta da noite. Aguardo pela análise detalhada, pelo de deboche que acaba, invariavelmente, em traçar um perfil psicológico da situação. Está feita a minha análise. Nunca me zanguei por isso, a...

presente sem embrulho

E eu jurava que ia levar um pito daqueles. Fui previamente advertida por amigos terroristas “leva outra muda de roupa pro almoço ou toalha”. Fui crente da merecida mijada. Preparei todas as caras de piedade. Sem exageros. Entrei no restaurante como quem caminha na corda bamba e pior, do alto avistei o chão, sem rede protetora. Sentenciei a queda. Antevi um ponto ruivo estatelado: eu. E o que eu mais espero sem acreditar que possa acontecer, aconteceu, a surpresa. O que eu tinha na minha frente era uma pessoa tão sincera quanto eu despejando informações que me deixavam sem a menor vontade de interromper. Limite-se a respirar, pensei, porque até isso podia parar naquela hora. Minha impressão é que o mundo em volta tinha desligado. Os garçons paralisados, as pessoas mudas, nem os talheres ousavam cair. A vontade era de saber mais. Eu sempre digo que as pessoas não têm manual de instruções e acho isso muito bom, mas isso não é motivo pra que não exista sinceridade. Fui apresentada a um ...

desculpa

“Amar é jamais ter que pedir perdão”. Já repeti essa frase dezenas de vezes, ouvi algumas boas centenas. Conheci ainda pequena as palavras eternizadas no filme Love Story, foram proferidas pela atriz Ali MacGraw. Obviamente, na época, não fez muito sentido, mas, carregada de lirismo, me encantou. Eu achava mais que bonita, era parte de um universo que eu não dominava: amar e pedir perdão. Nas minhas infantis concepções de amor, perfeita. Nas minhas vagas concepções de perdão, adequada. Adaptava na justificativa de algumas travessuras. Descobri que John Lennon contrapôs a frase dizendo que “amar é pedir desculpas de quinze em quinze minutos”. Não sei o que meu beatle favorito, Ringo, diria sobre isso. Eu digo que me parece mais apropriado pedir desculpas ao que se gosta e muito mais a quem se gosta. Talvez digno seja pedir desculpas por gostar. Hoje vou além de John, discordo de cada letra do filme Love Story. Pedir perdão é o que se faz antes de tudo. Pedir perdão é o que se faz ...

rede de carnaval

O céu passou a tarde inteira em um azul escancarado. Não teve vergonha de abolir as nuvens, não deixou que surgissem riscas brancas de giz por nenhum grau do horizonte. Desenhou o infinito em tons de luminosidade até chegar a noite. Eu, como boa gulosa de felicidade, aproveitei o clima para ver no rosto de uns amores sorrisos. Fiz da rede um universo modesto, onde eu pudesse brincar de Deus, determinando as espreguiçadas e os cochilos entre as viradas de páginas do livro. Busquei com a ponta dos dedos os embalos dos impulsos na parede. Analisei meu pé descalço há quase doze horas. Agora à noite, a lua é miúda, discreta entre umas porções de estrelas, organizadas em pequenos grupos, que me parecem tão íntimas. Quase me chamam pelo apelido. Fofocam sobre mim, trocam confidências sobre os pedidos que eu faço, sobre as coisas que eu conto. Apenas não duvidam porque testemunham. Acabei de passar o céu em revista. O pelotão de estrelas também não permitiu as nuvens. Sim, fui procurar por ...

areia no tênis

Uma vez, em vez de um beijo na boca, ganhei uma mordida no queixo. Estava tudo tão certinho, toda a cena perfeita, há meses o beijo era uma ameaça constante, uma certeza comparável à morte. Os amigos já comentavam, plantamos expectativas, despedimos a discrição sem aviso prévio. Não cochichávamos mais ou ficávamos afastados na multidão. Até as pedras das calçadas estavam na torcida. Nossos olhares não se cruzavam mais, eram tatuados um no outro. Era outono, início de outono. Desses que já mandam as folhas caírem em chuva nas primeiras semanas. Um outono desses que fecha o verão, que autoriza a temperatura a baixar, a pele desbotar. Ainda trazíamos as mochilas do verão, o gosto da água do mar, a ardência nas narinas. Dentro do meu tênis, areia. A agenda voltava a ter lista de livros e horários de aulas, junto com anotações em código, letras de música e desenhos. Nunca fui uma adolescente típica. Eu sequer brigava com os pais para sair batendo portas e pés pela casa. Eu não insisti na...

faz-se mundo

Procura-se alguém disposto a fazer mundo. Porque das pessoas que fazem tempestades em copo d’água, eu já estou farta. Por favor, apaguem esse holofote, desliguem a fumaça, mandem embora a platéia. Não quero esse picadeiro por aqui. Pelo menos não pra falar de amor. Não para sentir paixão. Andei aprendendo que sentimento é confissão e que não se gosta sem antes ajoelhar para assinar na linha pontilhada a autoria de pelo menos um crime. Que por mais que alguma sedução seja necessária, a cara lavada das manhãs de domingo é o que faz um par seguir. Não é o amor cru, não é o ciúme ou a falta dele, não é o bilhete de eu te amo postado embaixo do travesseiro ou as rosas mandadas sem motivos, não é o romantismo, nem as noites de sexo ou os jantares à luz de velas, beijos de cinema, despedidas de novela no portão de casa. Isso alimenta, é o que engorda. E não é a não entrega o que preserva ou protege ninguém de chorar na companhia dos azulejos do banheiro. A gente toma paulada na cabeça e é ...